Textos

Alcoolismo: Em Busca da Cura

Flavia Bastos


São sete horas em ponto e Otávio e Júlia se preparam para participar de mais uma reunião que acontece toda semana no bairro de Pinheiros, em São Paulo. O lugar é organizado, mas o assunto, delicado. Os colegas encontram-se todas as terças e quintas-feiras no mesmo horário e lugar, sempre na esperança de repetir o lema: “só por hoje não bebi”. Sentados em círculo e comandados por um outro rapaz que sofre também do mesmo problema, os presentes desabafam e relembram dias turbulentos de suas vidas. São gratos pela transformação. Ali acreditam que ganham força para continuar longe dos males provocados pela bebida. Viveram tempos complicados, perderam a dignidade, querem uma transformação e uma mudança definitiva em seus hábitos, nos quais a bebida não tenha mais espaço.
A reunião é dos Alcoólicos Anônimos, mais conhecida como AA. Uma organização que existe no mundo inteiro e que luta por meio de crenças, pensamentos e compartilhamento de ideias. O objetivo é sempre um só: mantê-los longe do mal e a cada dia alcançar uma conquista. Por isso repetem em voz alta e com orgulho: “só por hoje não bebi”.
Não se apegam a quanto tempo não colocam uma gota de álcool em suas bocas. Aliás, quando pergunto sobre o tempo, desconversam. E voltam ao lema de sempre, que, sem dúvida, os fortalece. Ali funciona também um centro de convivência. Alguns moram no local onde acontecem as reuniões. Nem todos sofrem do problema do alcoolismo. A maioria inclusive nem frequenta as reuniões. As pessoas que participam desses encontros vêm de fora. Procuram manter a disciplina, mas, às vezes, desaparecem.

– Quanto tempo!
– Pois é, estava em missão por conta do trabalho.
– Mas firme e forte? – perguntou o colega.
– Sim, só por hoje!
– Sentimos a sua ausência, mas eu e Otávio cuidamos de conduzir as reuniões.
– Que bom! E como elas têm sido?
– Como sempre – retrucou. – Alguns desistiram, outros começaram e alguns vivem faltando.
– Pois é, faz parte, mas eu estou de volta.
– Então, vamos começar?
– Estamos esperando por você.

A leitura dos quadros centralizados bem à frente dos participantes da primeira reunião era sempre o primeiro passo dos encontros, o que o protocolo pedia. São dizeres lidos e relembrados pela pessoa escolhida para conduzir a reunião. Os quadros estão emoldurados, as letras são grandes e todos leem em conjunto. Ao final da cerimônia, a mensagem é lida novamente. São conceitos relacionados à sabedoria, como:
“Deus conceda-me serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que posso e sabedoria para reconhecer a diferença”.
Outra informação, que a irmandade, forma como se classificam, não deixa de cumprir é a reflexão sobre os 12 passos dos alcoólicos. Os passos são colocados em prática diariamente entre os participantes do grupo: inclusive um cobra do outro tais atitudes com o objetivo de se fortalecerem para não “entrar numa roubada”. Otávio relembra um jovem do primeiro passo do mandamento, quando o iniciante que pretende começar a frequentar o grupo diz:
– Sempre soube que podia controlar meu vicio... mas foi quando...
Otávio o interrompe.: – Você tem que lembrar do que diz o primeiro passo dos 12 que pregamos aqui: admitimos que éramos impotentes perante o álcool e que tínhamos perdido o controle de nossas vidas.
– É um pouco radical – disse o jovem.
– Mas é assim que começa, é importante termos a consciência de que precisamos de ajuda.
O jovem começa a suar e suas mãos tremem um pouco. Então, ele completa:
– É por isso que estou aqui.
Otávio conta a ele e aos outros participantes como o AA colaborou para sua recuperação.
No galpão onde acontecem as reuniões, comprido e largo, com vários quadros dispostos na parede, uma mesa de plástico no centro e um armário onde supostamente deveria haver livros para serem pesquisados sobre o tema, porém em vão, nem sempre vemos os mesmos rostos. Pessoas vêm e vão. Poucas são verdadeiramente assíduas. Otávio e Júlia são os que realmente mantêm o compromisso, assim como um trabalho. Além de julgarem importantíssimo para sua autoestima e suas batalhas contra o mal que é a bebida, acreditam também na “missão cósmica” que receberam para ajudar outros que sofrem do problema.
“Não é que ache que nunca mais enfrentarei esse problema, mas sei que as reuniões foram fundamentais para minha recuperação e quero poder ajudar pessoas”, conta ele.
Confiante, falante e bastante simpático, Otávio foi quem me recebeu no centro de convivência. Fez questão de me mostrar todo o espaço, as poucas publicações utilizadas para a reabilitação dos participantes e de apresentar os colegas. Foi também o primeiro a sentar na cadeira onde se revezam para contar, não somente a mim, mas a todos os participantes, suas aflições e conquistas desde que começou a fazer parte dos AA.
– Num momento de minha vida, não sabia onde morava. Cada dia dormia num lugar. Várias vezes, inclusive, dormi na calçada. Outras vezes batia na casa das pessoas para me acolherem. Era uma vergonha. Lembro-me muito bem que ficava fritando na cama e não conseguia pregar os olhos. Era muita aflição”, lembra ele dos velhos tempos.
– E a questão do emprego, como você fazia? – perguntou um jovem rapaz que pretendia começar a frequentar as sessões.
Pedro R. tinha ainda muitas dúvidas com relação ao tema. Com 21 anos, não sabe se é ou não dependente de álcool. O fato é que nos últimos anos, desde que perdeu seus pais num acidente de carro, começou a beber quase todos os dias. Ele não queria mais esse cotidiano. E percebeu que se sentia mais forte com a bebida. Achava que era uma forma de suprir o vazio provocado pela ausência de sua família.
– Calma, rapaz – respondeu Júlia. – Você ainda vai ter muita coisa para assimilar e hoje é apenas seu primeiro dia aqui.
Já Otávio, apesar de simpático e falante, metia medo. Era um moreno muito gordo e que não tinha meias-palavras. Ia sempre direto ao ponto. Ficou um tanto desconcertado ao falar de seus fracassos na frente do garoto, ainda mais da primeira vez que o via.
Fiquei pensando o porquê de ele ter se esquivado de responder.
Na semana seguinte, Pedro demorou a chegar. Nesse meio-tempo, outros participantes deram ali seus depoimentos. Otávio e Júlia, sempre presentes, conduziam as outras pessoas que iam chegando. Naquele encontro apareceram mais duas pessoas. Um pouco intimidadas, também não falaram durante quase todo o tempo.
Foi quando Otávio, que foi o escolhido para conduzir e coordenar a reunião, começou a explicar, após a leitura do quadro colocado à frente dos participantes, a proposta daqueles encontros.
- Os alcoólatras demoram a tomar a consciência de que isto é uma doença. Aqui, procuramos lembrar que apesar de sermos minoria, 10% da população sofre desse mal. Logicamente ninguém sai por aí dizendo “sou alcoólatra”, nem com uma plaquinha no pescoço. Mas as pessoas que convivem com os portadores desta doença sofrem muito ao vê-los nesse estado, relembrava a administradora do local que trabalha no centro há mais de dez anos e conta que já viu muitas pessoas que se recuperaram do alcoolismo.
– Você sabe o percentual de pessoas que aqui frequentam que conseguem se livrar do vício? – perguntei.
– Aqueles que têm força de vontade, persistência, iniciativa, pensamento positivo e levam o trabalho a sério saem recuperados. Muitos também desistem no meio do caminho. Para falar a verdade, não tenho o número exato – completa ela. – Mas já vi de tudo por aqui.
O problema, como sabem, não é somente a bebida e sim, as consequências trazidas pelo álcool. Naquele espaço e local percebe-se a luta a favor da abstinência. Não somente da abstinência, mas junto com ela da violência, das tragédias e das doenças.
Ficou claro, principalmente ao ouvir o depoimento daquelas pessoas, o “inferno” pelo qual familiares e pessoas próximas passam no contato com os dependentes do álcool.
– “Não acredito que você bebeu de novo!” – Conta Carlos, refazendo a cena que teve com sua mulher, de um triste episódio que viveu nos tempos de bebedeira. – Encontrei uns amigos e não resisti em dar uns goles.
– Pois hoje você não vai dormir em casa! – disse a mulher ao homem nitidamente alcoolizado que chegava cambaleando e com um bafo para lá de horrível.
– Esta foi somente uma das brigas que tivemos, até ela me mandar embora de casa – conta ele, que já se meteu em grandes acidentes causadas pela droga. – Por pouco, não morri – continua ele. – Foi quando ouvi tiros no boteco em que estava bebendo com meus amigos e quase não consegui correr, foi um verdadeiro horror.
Mas voltando às reuniões e ao Pedro, nesta segunda rodada de reuniões, ele chegou, quase no fim. Para a surpresa de todos, ele entrou no local meio alterado. Minutos depois estava claro que ele havia bebido. E aparentemente não foi pouco.
Isso me mostrou na prática uma pergunta que havia feito a Júlia, aquela que também não faltava a nenhuma sessão: se aquilo já havia acontecido e qual era a atitude dos responsáveis.
– Isso já aconteceu diversas vezes por aqui. Não podemos expulsá-los do local. Mas eles sabem que não estão no lugar certo. Fica claro o arrependimento.
Júlia me pede para ler o quinto passo do regulamento
- Procuramos lembrá-lo do que manda a cartilha, que diz: admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano a natureza exata das nossas falhas, mas só esperamos que eles demonstrem sabedoria ao reconhecer seus erros conforme o décimo passo.
Júlia lê em voz alta e depois pede para que todos façam a mesma coisa. Fala para Pedro ler olhando para todos os presentes daquele dia.
– Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós os admitíamos prontamente.
Todos fizeram o exercício, orientados pelo seu mestre.
Júlia me contou depois, desta vez em particular, que muitas vezes já viveu aquela situação. Os demais estavam ali, ela diz, não para criticá-lo ou ridicularizá-lo, mas, sim, com outra proposta: a de ajudá-lo a se manter sóbrio.
– Ainda bem que estamos aqui para ajudar pessoas como Pedro. Já vivi situações como estas em locais onde as pessoas riam da minha cara – relembra ela.
Além de se colocarem vulneráveis, pois este é o menor dos males, podem muitas vezes se meter em encrencas. Sem contar os que têm alguma tendência à agressividade. “Daí a coisa complica”.
– Vou falar a vocês, sem querer ser chata, de algumas “atitudes” que me ajudaram muito no meu sucesso contra o mal que é a droga .
Alguns se mostraram muito interessados e logo disseram:
– Compartilhe, por favor.
– São pequenas atitudes do dia a dia que nos ajudam a “ficar limpo”
– Fale logo – disse o novo participante do grupo, bastante agitado
– São coisas básicas que podem ter um resultado extremamente positivo. Leia para nós este quadro – disse o mentor apontando para o quadro negro disposto à frente de todos.
– Evite: pessoas, hábitos, lugares, segredos, preguiça, ressentimento. Procure: honestidade, boa vontade, solidariedade, ação criativa, literatura, serenidade, mente aberta, poder supremo.
Eram estes os ensinamentos e “dicas” que tratavam naquele galpão onde antigamente existia uma igreja que foi demolida para abrigar pessoas que não tinham onde morar e que mais tarde tornou-se palco para as reuniões.
Mas a diferença para mim estava clara. Todos ali eram iguais, estavam passando pela mesma situação ou já haviam passado. Logicamente não é somente esse grupo de apoio que ajuda estes dependentes a se livrarem do vicio.
Outras alternativas também estão disponíveis para quem realmente quer se recuperar. De acordo com o livro O Fim do Meu Vício, escrito pelo médico Dr. Olivier Ameisen, que também sofria do problema, muitas alternativas devem ser procuradas quando você quer dar um fim nesta doença.
Ele alega que os portadores devem procurar um tratamento eficaz. Normalmente, o primeiro passo que as pessoas dão é procurar o AA, mas, no caso dele, somente o AA não foi suficiente. Uma longa e profunda viagem estava traçada no destino desse médico. Após ter coragem, pois este é o primeiro passo: o de assumir não apenas para o outro, mas para si mesmo que sofria do problema. Depois disso, viria um batalhão de afazeres pela frente, incluindo internação, a busca por um medicamento, entre outros. Inclusive, foi aí que o médico encontrou sua cura, num medicamento eficaz que reduzia a sua vontade do contato com a bebida.
Os males trazidos pelo alcoolismo são incontáveis, mas segundo o médico especialista Dr. Arthur Guerra e colaborador do livro Drogas – O que você precisa Saber (Flavia Bastos e Beatriz Monteiro da Cunha - Editora Evoluir - 2003), o pior estrago na maioria das vezes se dá dentro da própria família. Prejudica as relações, destruindo o respeito que dificilmente pode ser reconstruído. Quando lhe pergunto sobre as principais causas, ela respira profundamente e conta que são diversas e que normalmente tudo começa com aquela “bebidinha” que tomamos para relaxar nos finais de semana. Diz ainda que quem tem algum caso na família tem pelo menos o dobro de chance de se tornar alcoólatra.
O exemplo do médico foi importante para mostrar como o conjunto de iniciativas é importante para chegar à solução do problema do álcool. E, mais claro ainda, que cada caso é um caso: no caso dele o remédio foi fundamental. O seu diagnóstico foi complexo feito pelo seu médico e sem dúvida serve de exemplo para pessoas que estão sofrendo do mesmo problema que ele.

O Diagnóstico do Médico

“Apesar de muitas hospitalizações em diversos estabelecimentos especializados, comparecimento assíduo às reuniões do AA e uma relação positiva comigo, na medida do possível levando em conta seu estado, o Sr. Amensein jamais conseguiu atingir a sobriedade por mais que alguns dias durante o período de 2000 e 2002.
O curso de sua doença foi marcado por inúmeros acidentes e traumas físicos relacionados a sua forte alcoolização. Seu estado somático se deteriorou e piorou pela negligência. As pessoas se fecharam para ele, salvo alguns conhecidos do AA, em geral eles mesmos espantados pelo estado e comportamento do Sr. Ameinsen. Ainda assim, os parâmetros biológicos mantinham-se normais.
Seu estado atingiu um ponto em que mesmo uma relação psiquiátrica profissional contínua tornou-se impossível, sob risco de se tornar uma forma simulada de terapia desprovida de honestidade. Não vi o Sr. Ameisen por um ano, ainda que ele ocasionalmente me telefonasse para dar notícias.
O Sr. Amensein me contactou recentemente por telefone, dando-me as ( boas) notícias em voz clara e segura, muito diferente da voz que eu percebera nas conversas anteriores. Ele me contou que estava se automedicando com baclofeno e escrevendo um artigo sobre sua experiência para publicação em algum periódico especializado. Decidimos nos encontrar no dia 3 de novembro. A aparência e o comportamento de Sr. Ameisen haviam mudado espetacularmente em todos os níveis: sua linguagem corporal era segura, apresentava semblante aberto, pele limpa, sem sinais de abuso crônico de álcool, fazia contato visual, nem arrogante nem obsequioso, falava com clareza e sobriedade, com articulação. Resumindo: nenhum sinal do uso de álcool.”

Enquanto isso

Por isso, na última sessão dos AA que fui, fiz questão de dividir o livro com os participantes e mostrar que a solução existe e que está dentro de cada um. Todos pareceram muito gratos em receber aquele material que levei durante a sessão. Alguns inclusive já o conheciam. Folheavam e liam em voz alta alguns trechos e mais tarde tiveram uma ideia bastante interessante.
– Vamos representar esta história com uma peça de teatro – disse Pedro.
– Hum, gostei – disseram os outros participantes.
Todos ficaram encantados com a sugestão.
Naquela mesma noite, encenaram a situação vivida pelo médico: ficou fantástico e todos de um certo modo se emocionaram.
A produção foi espetacular: todos afastaram as cadeiras que estavam dispostas em círculo, improvisaram um figurino e até decoraram a ambiente, deixando-o parecido a um “consultório”. Esta era a parte 1 da encenação, na qual Pedro, que vivia o Dr. Amenstain, na ficção, já dava sinais dos sintomas provocados pela bebida. Depois disso, transformaram o ambiente num quarto, juntando as várias cadeiras, e transformando-as numa cama, onde o médico passava grande parte de seu dia e não tinha a menor vontade de se levantar, cumprir seus afazeres e se relacionar com as pessoas. Ao final, todos viram a recuperação dele, sua cura.
Os participantes bateram palmas. Outras pessoas da casa desceram para o galpão para conferir a produção.


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